sexta-feira, 15 de maio de 2020

Noite. Dia (Q1)


Meia-noite. Meia-noite? Talvez duas da manhã. O celular tem hora. O computador tem hora. A hora não é hora. É que o tempo deixou de ser temporal. É uma consequência da limitação do espaço. Nunca soubemos o que bilhões significava para o mundo. Não acho que vamos descobrir agora.

Acender um cigarro na varanda não me rende mais o interfone tocando com reclamação do síndico ou, em casos da fumaça ter um cheiro diferenciado, de notificações do condomínio que nunca paguei e deixei para meu locatário.

Gosto do vento da varanda. Antes vinha com fumaça de plástico queimado de uma casa invadida aqui no bairro, ou do retorno do esgoto quando as chuvas alagam as ruas e todo o lixo urbano se mistura às águas pluviais. Também tinha um vento. É um dos poucos prazeres de morar entre o subúrbio e um bairro de classe alta. Vento de uma avenida que rasga a cidade. Não tem cheiro, mas tem intensidade. Não tem sabor, mas tem sensação. Não tem rumo, mas tem sentido para mim. Sentado numa cadeira desconfortável, sinto dores que não tinha quando era mais ativo fisicamente. Na prática, deveria estar aproveitando a economia de tempo de deslocamento em possibilidades de aprimorar o meu eu. Treinar. Sempre gostei de me exercitar. Em qualquer possibilidade. Mas não me lembro, agora, da última vez que me exercitei só pela tal da endorfina. Meu exercício tem sido psíquico.

Psíquico. Não mental. Não é estudo. Não é aprimoramento. Não é busca por conhecimento que vai se tornar algo melhor para mim quando tudo passar. É psíquico não só porque é o tipo que derrota o lutador. É psíquico porque minha psique precisa ser estimulada. É isso ou sucumbir à anseios mentais que evocam toda uma base privilegiada de conhecimentos sinalizando que vai piorar. Vai piorar. É o Brasil. Nunca duvide do Brasil. Não duvido.
E se não há dúvida, como eu ainda quero ficar aqui? É que eu sou teimoso. Rancoroso. Câncer com ascendente em capricórnio. Não importa. A reflexão vai longe, mas o sono chega. E aí eu lembro que sou humano. A cerveja esquenta. 

O copo tá vazio e a preguiça de abrir outro me alenta. Amanhã eu desperto em algum horário sem hora. Num dia que não tem semana. É mais um número. Perdido. Sem tempo. Sem espaço. Apenas mais um dia. Bom dia.